Dia desses estava lendo um livro num banco da Praça da Gentilândia (em Fortaleza/CE-BR) quando fui abordado por um senhor levemente trôpego. O gajo perguntou-me se podia sentar ao meu lado. Em que pese o seu hálito etílico, assenti.
Uma vez sentado o homem quis saber o que eu estava lendo, ao que respondi ser uma coletânea de contos do Domingos Pelegrini. Olhando-me nos olhos ele me disse: “Já sei, é professor”. E “lascou” uma pergunta: “Porque é que tem gente que acha que eu não sou gente; humano?”. Conversamos um pouco sobre o assunto e depois seguimos cada um o seu caminho.
Na Universidade comecei a refletir sobre a da pergunta do meu amigo anônimo. E fiquei brincando com as palavras: “Humano-homem-Humanidades...”. Foi assim, passeando pela Internet, que topei com os Encontros Ateístas e Humanistas de Lisboa (http://encontros.humanismosecular.org/). Lembrei que um amigo, Psicólogo, dissera-me estar fazendo “formação” em Humanismo. Doutra sorte, sabemos que nas Universidades costuma-se ter Centros de Humanidades.
No cotidiano, ouço e leio coisas espantosas acerca do que se usou chamar de humano. Às vezes chego a pensar – como o marcianinho da revista Status – que pousei no planeta errado. Diz-se: “Seja mais humano cara, deixa o cachorro em paz”; “Precisamos humanizar esse ambiente”; “O Chico é um ser humano de primeira”; “Essa história de brigas raciais já passou da conta”.
É sobre um imenso caldo cultural que se debruçam os que fazem do cotidiano (passado ou presente) o objeto de sua expertise, analisado-o segundo as contribuições teórico-metodológicas da sua eleição. Somos (Sociólogos, Psicólogos, Juristas, Antropólogos, Assistentes Sociais, Linguistas etc), lato sensu, humanistas. Assim, o sentido primitivo de Humanismo – inicialmente ligado ao cristianismo – foi perdendo-se no curso da história, passando a ser encarado como um saber laico e às vezes anticlerical.
A síntese dessa nossa conversa, que não pude transmitir ao meu colega de banco de praça, é que não há de se falar em gradação de humanidade, também é incoerente falar em humanos de raças diferentes, tampouco dizer de espaços não humanos – entre humanos.
Cá pra nós, também é preciso que se diga que os múltiplos olhares humanísticos têm relação com o fato de que nossas fronteiras estão em permanente movimento (quanto aos objetos e as teorias com que tentamos apreendê-los). Importante salientar também que em Humanidades há fixos e fluxos (há métodos de pesquisa e teorias mais duradouros, mas há novas formas de olhar e interpretar os objetos surgindo a cada momento).
Nos anos 1980 considerávamos um avanço poder analisar um objeto por vários ângulos – era o tempo da multidisciplinaridade. Passados alguns anos nos dispúnhamos a intercambiar saberes para analisarmos determinado objeto – era o momento da interdisciplinaridade. Hoje, nos atrevemos a uma tarefa ainda mais difícil – analisar simultaneamente determinado objeto com várias contribuições, formando um todo acadêmico que se lança inclusive para além das Humanidades – a isso chamamos de transdisciplinaridade.
Creio que o meu amigo do banco da Praça de Gentilândia terá dificuldade em captar todo o conteúdo desse texto, mas ele tem razão: “É tão humano quanto este escriba e seus gentis leitores”, por isso cabe-nos – acadêmicos ou não – lutar pela dignificação da sua vida, bem como dos sem teto, dos sem terra, dos meninos e meninas de rua, dos catadores e de todos os demais desvalidos que compõem conosco e com os demais atores sociais o nosso tecido humano. Isso é o Humanismo saindo da teoria para agir politicamente sobre a sociedade que estuda.