sexta-feira, 1 de maio de 2009

O mundo do trabalho ou outros mundos para o trabalho?

RESUMO

O presente estudo dedica-se a discutir os conceitos de labor, trabalho e ação humana, na perspectiva abraçada por Hannah Arendt. Busca-se fazer a distinção entre trabalho possível e trabalho necessário, tendo em vista perspectivas econômico-sociais de classe. Faz-se o diagnóstico da necessidade e viabilidade do trabalho e de seus efeitos no exercício da cidadania.

PALAVRAS-CHAVE:
Trabalho e labor; mundo do trabalho e mercado de trabalho.


ABSTRACT

The world of work or other worlds to work

The present study dedicates to discuss the concepts of labour, work and human action, in perspective adopted by Hannah Arendt. It searches to do the distinction between possible work and necessity work, in concern social-economic class perspectives. It is done the diagnosis of necessity and viability of work at immediate effects and interference to admission of world work at citizenship.


KEY WORDS:
Work and labour; world of work and market of work.



Introdução

Somos estranhamente introduzidos na sociedade capitalista por meio da dicotomia ócio versus trabalho; vagabundear é coisa reprovável e até sancionável. Com isso aprendemos a buscar reconhecimento social por meio de práticas relacionadas com o modo de ingresso no trabalho (trabalho desde os doze anos ou vim de baixo, comecei como Office boy), a formação de uma carreira profissional e as perspectivas de sucesso no mundo do trabalho (por vezes fetichizadas via bens de consumo).

O estranho dessa questão é que não nos é dada a oportunidade de ver no ócio um espaço alimentador da vida – exceto no contexto do repouso semanal remunerado e das férias. Tampouco se proporciona oportunidade para a discussão sobre as diferenciações sociais e as demandas laborais. Tudo isso porque somos treinados para não questionarmos fatos que parecem incorrigíveis; naturais mesmo. Fatos como a diferença entre trabalho e lucro, a distinção entre necessidade e possibilidade de trabalhar, ou a relação entre trabalho e qualidade de vida.

Esse artigo compôs parte da discussão que empreendi em minha tese de doutoramento sobre o trabalho de adolescentes no Brasil contemporâneo e o papel das ONGs em sua formação e/ou inserção no mundo e mercado do trabalho. Aqui, prender-me-ei a discussão sobre três aspectos que julgo importantes para compreendermos os contornos que o trabalho assumiu a partir do século XIX: o lugar da ética e das normas jurídicas; o lugar (se é que existe) do ócio; a existência de um modo de hominização no trabalho.

Apesar de prender-me a aspectos contemporâneos e ocidentais do mundo do trabalho não pude me furtar de destacar a relevância de signos em torno da operação do trabalhar em basicamente todas as sociedades humanas. De certa forma reside ai a tese marxiana da hominização, que mais tarde é considerada como alienante ou estranhada no capitalismo.

Até o final desse artigo espero trazer elementos que contribuam na tarefa de responder a seguinte questão: o homem inventa o trabalho ou é inventado por ele?



1 Trabalho, ética e legalidade

O trabalho é uma das instituições humanas mais complexas, posto que o termo comporta significados implícitos e explícitos que definem desde o modo de reprodução econômica de cada sociedade até seus pressupostos éticos e suas interpretações acadêmicas e ideológicas. Desse modo, o trabalho e o não-trabalho excedem o aspecto produtivo ingressando numa intrincada teia de valores e contra-valores onde objetividade e subjetividade se entrelaçam.

Palavras como tarefa, atividade, esforço, faina, labor são freqüentemente utilizadas com o significado de trabalho. Entretanto se faz necessário estabelecer a distinção entre esse esforço produtivo, que provisoriamente chamarei, lato senso de trabalho, em suas vertentes remunerada e não remunerada. Chama-se de trabalho remunerado, na perspectiva econômica da geração de renda ou sob a relação de emprego capitalista, à contratação de uma porção de força produtiva humana (mensurada em tempo ou desempenho) para a realização de determinada tarefa. Porém, pode-se chamar de trabalho não remunerado aquele esforço produtivo realizado de forma graciosa, por generosidade, filantropia ou simples afeição – exemplos disso são: a divisão das tarefas domésticas entre os membros de uma família; os mutirões para construção de moradias; as ações voluntárias de jovens e adultos junto a populações de alguma forma necessitadas. Entretanto, também é considerado como não remunerado o trabalho escravo, onde se dá a aquisição de toda a capacidade produtiva de alguém por meio de logro, submissão (física ou psicológica), mercantilização da vida humana.

É nesse intrincado contexto que Hannah Arendt traz uma nova leitura ao horizonte do trabalho: a distinção entre trabalho, labor e ação. Neste momento, interessa-me particularmente a referência a trabalho e labor. Freqüentemente os dois termos são utilizados como sinônimos, mas Arendt faz questão de demonstrar o equivoco aqui expresso. Para a autora o labor corresponde ao modelo do homem escravo das necessidades, que realiza atividades para garantir a existência. Ainda segundo ela, o trabalho assume a sua feição de superação do labor na modernidade, quando o homem se assenhora do sentido da produtividade como valor (ARENDT, 2001, p. 90-97). Em outras palavras, enquanto o labor corresponde ao modo humano de garantir a própria sobrevivência, semelhante ao que fazem outros animais, via trabalho o ser humano especializa-se como construtor de instrumentos, ferramentas de produção, porém ainda lhe falta sentido, consciência na sua ação.

É preciso entender que estas diferenciações não são etapistas. Também não pretendo afirmar que qualquer ser humano pode ser entendido como laborioso ou trabalhador. O que se observa, via concepção de Arendt, é que o lado laborioso da produção humana é desprovido de permanência – por exemplo a criação de animais ou a agricultura primitiva são exemplos de labor. Entretanto, nem todos os homens terão acesso à ferramentas sofisticadas – produzidas a partir de recursos da natureza não reprodizíveis, como o arado ou o trator – mas esse homem produtor ou usuário de tecnologia, trabalhador para Arendt, também pode desconhecer o valor da condição humana, que se formata via o sentido da sua ação – da sua liberdade de agir segundo pressupostos éticos e categorias lógicas.

Aqui, faço questão de frisar que o trabalho enseja leituras de ordem econômica e ética de cada sociedade. Dito isso, peço que se observe o seguinte:

a) podemos dizer que todo dispêndio de força produtiva é trabalho?

Sim, mas isso carece de maior esclarecimento. Lato sensu, qualquer dispêndio de energia produtiva é considerado como trabalho. Na óptica econômica, é trabalho o dispêndio de força produtiva capaz de gerar valor.

b) pode o trabalho, embora remunerado, não ser considerado produtivo (por, economicamente, não gerar excedente, logo produzindo apenas renda)[1]?

Legalmente, pode. Nos países capitalistas o uso de empregados domésticos tornou-se freqüente. Esse tipo de trabalho assume o papel de satisfação de necessidades do cotidiano domiciliar. Tal trabalho gera uma massa de salários e obrigações trabalhistas, o que inclui esses trabalhadores na população economicamente ativa (PEA), mas para as legislações laborais – como a brasileira – suas atividades, por sua finalidade, não se prestam para gerar valor econômico.

c) há trabalhos remunerados economicamente, integrado a uma mercado e ilegais?

Há. Existem situações em que a atividade é normatizada como ilegal, logo, a remuneração oriunda dessa atividade – diretamente ligada a esse mercado – também é ilegal, logo não gera direitos trabalhistas ou previdenciários. Para esclarecer vejamos as seguintes situações:

I. O tráfico de pessoas é remunerado, tem mercado e se constituiu em atividade lícita ou suportada até o século XIX, mas hoje é execrado por legislações nacionais e convenções internacionais. Logo, a ilegalidade contempla qualquer prática na cadeia produtiva relacionada com esse ato.

II. Desde a antiguidade tem-se notícia da prostituição – que embora moralmente questionada (até por falsos moralistas) mantém-se em quase todo o mundo (ora legalmente, ora ilegalmente). Pode-se dizer que a prostituição, assim como o tráfico de pessoas, é remunerada, atende a um mercado, mas comporta (na maioria dos paises) uma ilegalidade para o praticante, o intermediário e o usuário; ora apenas para o intermediário e o usuário. Assim, as trabalhadoras do sexo estarão praticando uma atividade legal ou ilegal segundo os pressupostos de cada Nação.

III. O trabalho praticado por crianças (e, em alguns casos, por adolescentes) é combatido por convenções internacionais e, mesmo assim, praticado por diversos Estados. No caso brasileiro, o trabalho infantil geralmente é remunerado, pode produzir valor do ponto de vista econômico, e seria lícito se praticado por adultos (ou adolescentes, considerados por Lei capazes para tanto), mas no seu caso é ilegal.

Para melhor entender a relação trabalho-legalidade se faz necessário ter em mente que os costumes funcionam como uma das fontes do Direito. Logo, o Direito é um comportamento socialmente produzido, quer adote a forma legislativa ou consuetudinária. Como assevera Noberto Bobbio uma norma é válida se for produzida por uma fonte autorizada (BOBBIO, 1995, p. 161). No caso brasileiro, o congresso nacional é fonte autorizada para legislar e o que o faz sob a tutela do voto popular, teoricamente representando o pensamento social. Porém, o Estado também normatiza por meio da ratificação de tratados e convenções internacionais em que se faz signatário. Desse modo, pode-se afirmar que as normas brasileiras relativas ao trabalho têm, em última análise, embasamento ético.

Por tudo isso, no Brasil: traficar pessoas é ilegal – logo, não gera trabalho no sentido normativo do termo (embora o seja economicamente); prostituir-se não é ilegal – mas, não gera uma tipologia laborativa no sentido normativo por restrições morais e éticas; o trabalho de crianças e adolescentes no País (salvo as exceções constitucionais) é ilegal – por força de pressupostos éticos (incluindo as convenções que somos signatários), mas a atividade em si pode ser lícita para outras pessoas não submetidas aos mesmos impeditivos da ordem do desenvolvimento físico, psíquico e social.

Por conta dos pressupostos éticos, no Brasil é ilegal o trabalho infantil doméstico e o trabalho de crianças e adolescentes em locais onde se venda bebidas alcoólicas. No primeiro caso por uma clara afronta à proibição de qualquer forma de trabalho infantil, no intuito de proteger o desenvolvimento dessas pessoas. Na segunda situação, busca-se proteger crianças e adolescentes do contato com uma das maiores fontes de estímulo à violência, o álcool; mesmo que este estabelecimento pertença a seus pais ou responsável.



2 Trabalho e não-trabalho

O trabalho vem sendo identificado nos dois últimos séculos como modelador do caráter e forma honesta de garantir a existência, mas nem sempre foi assim. A respeito do trabalho como valor cabem algumas ponderações, tais como: o sentido de trabalhar; a apropriação dos resultados do trabalho pelas partes envolvidas no processo de produção e alienação do valor-trabalho; e, o direito ao não-trabalho. Nesse momento quero deter-me a esse último enfoque.

De Masi assevera que num primeiro período da história humana, algo que dista de nós cerca de setenta milhões a setecentos mil anos atrás... o homem criou a si mesmo: aprendeu a andar ereto, a falar, a educar a prole (DE MASI, 2000, p. 23). Criando suas regras de convivência e produção o homem utilizou-se da mão-de-obra infantil como um agregado de valor, assim como o fez com o trabalho escravo e servil. Por outro lado a utilização dessa mão-de-obra infantil quer no campo – na Antiguidade e Medievalidade – quer nas cidades – da primeira fase da Revolução Industrial ao início do século XX – foi sempre naturalizada.

O ócio dos pensadores gregos e da nobreza iluminista eram privilégios de classe – permitidos apenas via processos de acumulação embasados no trabalho de outrem. Porém, ao contrário dos filósofos gregos e das Cortes da modernidade o “malandro” – tipo brasileiro cantado e analisado – não tem seu ócio justificado pela sua estatura na pirâmide social – sendo por vezes autor de estratagemas ilícitos, o que em linguagem do senso comum figura como “esperteza[2]”. Assim, quando Chico Buarque de Holanda escreveu sobre o malandro em sua canção A volta do malando e afirmou que o malandro é o barão da ralé[3] (HOLANDA, 1989, p. 233) conferiu a esse anti-herói – tal qual o Vadinho de Jorge Amado[4] ou o Zé Pilintra[5] – um status de “nobre do povaréu”.

Em outra canção de Chico Buarque de Holanda, Homenagem ao malandro[6] (HOLANDA, 1989, p. 162), o artista descreve o que Ruben Oliven chama de o atestado de óbito do malandro (OLIVEN: 1983, p. 59). Em outras palavras, o malandro teve que se inserir nas malhas do processo produtivo, isto é, aposentou a navalha, tem mulher e filho e, pasmem, até trabalha tendo que se sujeitar aos trens da Central (ibidem, p. 60). Assim, por ser considerado nocivo à sociedade o malandro precisava ser redesenhado para sobreviver. Reprimindo o seu traço violento e improdutivo, o novo malandro tem um aspecto regular, profissional. Continua oportunista, mas agora com aparato de coluna social. Como se pode ver, o malandro esculpido pelo artista está mais para os anões do orçamento[7] do que para Pedro Malasarte[8].

Não cabe aqui imaginarmos que o ócio seria necessariamente sinônimo de indolência ou malandrice. O ócio é acima de tudo não-trabalho, podendo também ser entendido como trabalho mental, descanso, repouso, folga ou até como negação do negócio – não negócio. Embora sejam “invenções” recentes, o repouso semanal remunerado, as férias e até mesmo a definição do tamanho da jornada de trabalho possibilitaram a expansão social do exercício do ócio. Ocorre que tais direitos sociais – institutos datados da transição entre os séculos XIX e XX, variando segundo o grau de organização dos trabalhadores e a oferta de força de trabalho de cada lugar – nem sempre são apropriáveis de fato pelos proletários, visto que muitos se submetem a várias jornadas, trabalham nas férias e ou dias de descanso para garantirem a mantença.

Merece destaque o fato de que contemporaneamente todas as classes sociais trabalham. De modo geral, mal nos damos conta hoje do fenômeno único e espantoso que é uma classe alta “trabalhadora” (ELIAS, 1994, p. 154). Tal fenômeno não se dá ao acaso, sendo resultado de um conjunto de fatos decorrentes, no Ocidente, da reforma protestante, da supremacia da moral burguesa e da própria divisão social do trabalho instalada no pós-revolução industrial.

De outra sorte, a história dos movimentos operários pós-revolução industrial (BRAVERMAN, 1987, p. 47 a 124) demonstra a ocorrência de um empobrecimento das atividades realizadas por esses no seu tempo livre. Pouco a pouco as atividades que exigiam maior instrução ou conhecimento erudito (filatelia, jogos de salão, concursos literários, jardinagem, aprendizagem de instrumentos musicais etc.) foram sendo substituídos por aquelas que exigiam maior destreza física ou simplesmente menor esforço intelectual.

As histórias do ócio e da produtividade pertencem à mesma linhagem (à família trabalho), embora esses personagens tenham sido mantidos afastados devido a interesses de classe. Por outro lado, a “vadiagem” – uma das formas de não-trabalho – nunca foi aceita pelas sociedades laborais. Entretanto, no capitalismo a relação com o trabalho é de tal forma socialmente orgânica que até manifestações patológicas como a depressão, durante muito tempo foram interpretadas como indolência, preguiça.

A famosa frase bíblica “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” (Gênesis 3, 19A) encerra a idéia de que deve sempre haver uma certa dose de sofrimento associada ao trabalho. Assim, o trabalho seria resultado da ira de Deus para com Adão e Eva pela autoria do pecado original que dessa forma estendeu-se a toda a humanidade como forma de punição genealógica. Isso, de certa forma, explica os estratagemas das classes privilegiadas (da Antiguidade Clássica à Modernidade) ao buscar se eximir do trabalho – sinônimo de “pena[9]” e “dor[10]” – via auto-atribuição de divindade ou por meio da oração.

Para Arendt o labor e o trabalho (ponos e ergon) são diferenciados em Hesíodo; só o trabalho é devido a Eris, a deusa da emulação, mas o labor, como todos os outros males provem da caixa de Pandora (ARENDT, 2001, p. 93-94), Assim, laborar significa produzir a própria existência com dor; sofrimento a que o homem faz jus pela sua condição de ser incompleto e incapaz de conter seus instintos – visão um tanto semelhante a trazida pelo livro do Gênesis.

Na sociedade capitalista é inteligível que se valorize o trabalho, devido ao papel dessa instituição na organização das classes sociais. Porém o que é exposto falaciosamente como um desempenho humano natural se deve, de fato, à herança moral e econômica de fonte judaico-cristã. Diferentemente do que ocorreu nos modos de produção que o antecederam, no capitalismo o trabalho permeia todo o tecido social, sendo a estratificação fundada não só na acumulação de bens, mas também na perspectiva produtiva.

Por outro lado, também fica difícil destingir o trabalho do não-trabalho quando alguém tem um insight acerca de um problema, num momento didaticamente tido como de lazer ou de ócio, algo muito freqüente em qualquer atividade intelectual. Dessa maneira, trabalho e não-trabalho interagem para além do formalismo das jornadas e da produtividade por elas balizadas.

O direito ao ócio foi uma das matrizes do pensamento econômico e social que marcou o final do século XIX até meados do século XX. Tal perspectiva fundava-se na tese de que a constante geração de excedente pelo trabalho humano justificava jornadas menores e conseqüentemente maior tempo para o ócio. O tempo foi o carrasco dessa interpretação, na medida em que os avanços tecnológicos liberaram o homem de certas tarefas, mas não lhe proporcionaram maior tempo para o ócio, e sim a possibilidade de produzir mais em menos tempo, o que provocou também a desnecessidade de exércitos de reserva. O mais grave desse processo foi a redução de postos de trabalho pela utilização de máquinas para a realização de lançamentos e tarefas mecânicas e o barateamento da mão-de-obra não especializada.

Noutra ponta, o desemprego coloca-se como um dos principais problemas dessa virada de século. Depois de décadas de defesa do pleno emprego, Estados e corporações tornaram-se ardorosas defensoras do empreendedorismo, algo difícil de ser implementado pela falta de capital das classes baixas e pela necessidade de vocação para essa empreitada.

Tudo isso trouxe um grande problema para a massa de trabalhadores treinada para receber e executar ordens: a globalização da economia e a automação do trabalho requerem pessoas criativas e com múltiplas habilidades, embora a maioria tenha sido conduzida, por várias gerações, à especialização e à não criticidade do sistema.

Os problemas gerados pelo desemprego e os conseqüentes longos períodos de ócio improdutivo tem proporcionado espaço para que sindicalistas e intelectuais venham em defesa de menores jornadas para que mais pessoas trabalhem. Ao lado disso encontraremos a postulação pela criação de benefícios públicos para empresas que empreguem mão-de-obra tecnologicamente pouco qualificada ou desqualificada (AZNAR, 1995). Os defensores dessa perspectiva consideram que se todos trabalharem menos sobrarão mais horas disponíveis para que outros possam trabalhar. Ocorre que o capital não atende a demandas sociais de modo volito e essa premissa carece de insumos tributários para atrair o empresariado, mas isso termina por gerar uma flexibilização das normas trabalhistas, o que no fundo irá gerar trabalhadores de primeira e segunda classe e o retorno ao conceito de labor em Arendt – trabalho para garantir a sobrevivência. Assim, resta perguntar qual o lugar do não-trabalho nesse modelo?

De certa forma é triste constatar que o ócio cada vez menos pode oportunizar aos mais pobres acesso à alta cultura (GRAMSCI, 1988), funcionando, no máximo, como meio para colocação ou recolocação no mercado de trabalho via treinamento – o que não é sinônimo de não-trabalho.


3 Trabalho e hominização

A história do trabalho e da humanidade se confundem, assim como o homem se confunde com o seu trabalho. Em qualquer modo de produção o trabalho está ligado a instituições e conseqüentemente ao processo de socialização de cada cultura.

A idéia de que as divisões sociais sempre se deram em função do trabalho tem menos sustentáculo do que a perspectiva inversa, qual seja: a divisão social possibilitava o exercício de determinadas atividades em detrimento de outras. Visto assim, é possível entender que alguém realizava certas tarefas não porque era escravo, mas, por ser escravo realizava tais tarefas. Por isso, se por um lado o emprego de escravos tende a afastar homens livres do trabalho, que é visto como ocupação indigna (ELIAS, 1994, p. 56), por outro, assevera-se que em Roma tanto cidadãos como escravos faziam trabalhos manuais (ibidem, p. 281).

Na história da humanidade encontraremos diversas leis que punem a vadiagem, por ser improdutiva e/ou vergonhosa aos “olhos de Deus”. Isso pode ser encontrado na seguinte citação bíblica, oriunda de Provérbios 6, 6-11:

Vai, ó preguiçoso, ter com a formiga, observa seu proceder e torna-te sábio:
Ela não tem chefe, nem inspetor nem mestre, prepara no verão sua provisão,
apanha no tempo da ceifa sua comida.
Até quando, ó preguiçoso dormirás?
Quando te levantarás de teu sono?
Um pouco para dormir, outro pouco para dormitar, outro pouco para cruzar as mãos no seu leito, e a indigência virá sobre ti como um ladrão, a pobreza como um homem armado.

Salomão, segundo a tradição judaico-cristã autor do texto acima, traduz o desprezo pelo não-trabalho por dois motivos, primeiro porque na sociedade judaica todos devem trabalhar (ao seu modo, inclusive sacerdotes e governantes), e em segundo lugar porque é por intermédio do trabalho que o homem se redime com Deus da ofensa ancestral de Adão e Eva. Portanto, o indolente fere normas humanas e divinas.

Estando o trabalho identificado como o processo de hominização é esse o primeiro motivo porque várias sociedades adotaram o trabalho infantil. O trabalho infantil para essas sociedades, além do aspecto de contribuir na mantença familiar – a exemplo disso encontraremos pinturas que retratam Jesus auxiliando José na carpintaria, em Nazaré – funciona como meio de socialização de valores – em outras palavras, forma pela qual se aprendia a ser homem ou mulher em determinada cultura.

A partir de Engels é possível compreender que trabalho e humanização são processos interligados. Segundo esse autor (ENGELS, 1984, p. 9):

Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que, sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.


Ao ligar trabalho e riqueza Engels não produz um discurso de matiz ideológico, mas afirma que só o trabalho é capaz de gerar excedente. Por outro lado, Engels introduz a perspectiva de que é o trabalho que se gesta o ser humano – em outras palavras, as capacidades humanas afloram-se e o diferenciam de outros primatas pela sua habilidade de gerar história com o auxílio do trabalho.

Hannah Arendt afirma (ARENDT, 2001, p. 169-170) que:

Na medida em que é homo faber, o homem “instrumentaliza”; e esse emprego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda de seu valor intrínseco e independente; e chega a um ponto em que não só os objetos da fabricação, mas também “a terra em geral e todas as forças da natureza” – que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu “valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho”.

Assim, é possível notar que o homem não só nomeia as coisas via linguagem, mas cria um código de usos e valores para explicar e justificar suas atitudes, inclusive no tocante ao trabalho. Esse homem fabricante de instrumentos instrumentaliza a própria natureza e estabelece códigos de acesso a esta. Dessa forma o homem cria um mundo à sua imagem e semelhança em cada tempo histórico, socializando os valores que aprouverem à classe dominante, assegurada pela hegemonia em relação aos meios de produção e ao controle da cognição – seja ele bélico ou tecnológico.

Discutindo o processo de alienação instalado particularmente a partir do capitalismo Ricardo Antunes (ANTUNES, 1988, p. 180s) assevera:

Se na formulação marxiana o trabalho é o ponto de partida do processo de humanização do ser social, também é verdade que, tal como se objetiva na sociedade capitalista o trabalho é degradado e aviltado. Torna-se estranhado. O que deveria se constituir na finalidade básica do ser social – a sua realização no e pelo trabalho – é pervertido e depauperado. O processo de trabalho se converte em meio de subsistência. A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produção de mercadorias. O que deveria ser a forma humana de realização do indivíduo, reduz-se à única possibilidade de subsistência do despossuído.

É possível inferir a partir dessa leitura que, se por um lado é o trabalho que define o modo de produção de cada tempo histórico, por outro ele tanto é motor de humanização como de desumanização. Se por um lado, via o progresso da ciência e da técnica foi possível criar meios de tornar a vida humana mais confortável, por outro, ampliou–se o fosso de segregação que separa as classes sociais e até mesmo os povos entre si. Assim, mesmo com os avanços tecnológicos constata-se que a maioria da humanidade ainda não ter acesso, sequer, a bens de ordem sanitária e alimentar, bem como são mantidos na condição de meros reprodutores de sua força de trabalho; o que não diferencia o capitalismo contemporâneo de momentos mais longínquos da história.

Como vimos anteriormente o capitalismo traz a inovação de propiciar que as classes altas também sejam “trabalhadoras”. Assim, Abdias José dos Santos e Ercy Rocha Chaves não estariam equivocados ao afirmarem (SANTOS, 1980, p. 18):

Queremos destacar o trabalho, em nossa concepção, como sendo a atividade que cria, de forma direta, ou faz criar de forma indireta, objetos para o uso dos homens, seu bem estar, seu conforto e segurança, indistintamente.

Quem realiza esta atividade, construindo objetos, de forma direta ou indireta, em nossa concepção, pode-se considerar trabalhador.

Isso faz sentido na medida em que as expressões “classe trabalhadora” e “proletariado”, fruto das modificações do século XIX, sofreram um desgaste com o passar dos tempos; elas não podem ser retomadas ipsis litteris para caracterizar a complexidade das sociedades contemporâneas (AZAIS, 1997, p. 42). Assim, a sociedade capitalista não se estratifica em trabalhadores e não trabalhadores, mas em detentores dos meios de produção e possuidores exclusivamente de força de trabalho.

Entretanto, é bom ter em mente que os detentores dos meios de produção e de força de trabalho não constituem blocos homogêneos. Em ambos os casos também ocorrem estratificações internas e a hominização se dá, inclusive por meio da absorção dessas distinções.

Quando chego na lavanderia e procuro pela “Dna. Toinha”, alguém logo grita: Toinha, o advogado. Assim, eu deixo de ter nome e passo a ser identificado por uma profissão. Isso acontece também quando meus filhos dizem: Pai, o teu Veterinário chegou – situação deveras embaraçosa, pois o veterinário tem nome (Caetano) e na verdade é médico dos meus cães. O mesmo se dá com uma legião de anônimos, conhecidos apenas como “garçom”, “flanelinha”, “moço” etc. Isso acontece porque numa sociedade cosmopolita a identidade não reside no nome ou nas relações de conhecimento. Nelas, a identidade freqüentemente está na aparência ou no modo em como se ganha a vida. Desse modo, o status quo é fortemente identificado pelo poder de compra. Talvez por isso os shopping centers estampem frases proibitivas à determinadas expressões de consumo (ou do não consumo) em lugar de uma expressa proibição classista (p. ex.: é proibido entrar de pés descalços). Do mesmo modo, foi preciso uma árdua luta jurídica para abolir dos anúncios de emprego a segregadora expressão “boa aparência” – que parecia trazer embutida fatores objetivos e subjetivos que mascaravam as intenções do autor da oferta de trabalho.

A Constituição Federal brasileira em vigor fez questão de referir-se ao trabalho de forma abrangente ao dizer que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.[11] Desse modo, lato senso, todas as formas de garantir a existência de forma legítima são respeitadas pelo texto constitucional, sendo inclusive vedada qualquer forma de discriminação salarial quanto ao exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil[12]. Porém a força constitucional não se opõe a dados de realidade como os seguintes, que destaco como pálida exemplificação a esse respeito:

a) as ocupações profissionais mais simples são preenchidas por mulheres e negros;

b) a condição de divorciado ou separado judicialmente representa empecilho, embora não revelado, para admissão (pelo empregador temer as faltas ao trabalho por conta de questões alimentícias);

c) as prostitutas precisam “inventar” uma atividade regulamentada para contribuírem para a previdência social.

Não vejo sentido em continuar afirmando que nos “tornamos” homens e mulheres pelo trabalho[13]. Isso, que parece mais um slogan do que uma perspectiva real serve para escamotear o fato de que a maioria das pessoas trabalha para garantir a existência e a aquisição de mercadorias fetichizadas pelo consumismo, não como um meio de transmutação.

Na verdade a hominização pelo trabalho somente seria possível em uma sociedade que estimulasse a criatividade, a criticidade e o exercício da cidadania.

É frustrante observar que o atual estágio de produção humana venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu (ARENDT, 2001, p. 336). Encontrar solução para esse enigma parece ser a maior missão já posta para a humanidade: como pode o homem se deixar capturar pela total negação de sentido para a sua existência, transformando-se em reprodutores de vidas sem sentido e de trabalhos sem prazer?

À guisa de conclusão

Retomo aqui a questão inicial: o homem inventa o trabalho ou é inventado por ele?

Ora, como vimos, a relação trabalho e não-trabalho vai para além do aspecto produtivo mergulhando num poço de valores e contra-valores onde objetividade e subjetividade se entrelaçam. Embora trabalhar seja a regra, não só no capitalismo, o não trabalho espraia-se da retroalimentação da força de trabalho (descanso entre as jornadas, férias etc.) à hipótese de geração de insights estimuladores do ato produtivo (principalmente se concordarmos com a leitura gramsciana de que todo trabalho humano é, de alguma forma, intelectual).

Por outro lado, se o labor corresponde estritamente ao modo humano de garantir a própria sobrevivência, como também fazem outros animais, é pela via do trabalho que o ser humano especializa-se como construtor de instrumentos, ferramentas de produção. Outrossim, apenas a ação humana pode emprestar sentido ao trabalho, via consciência.

Historicamente o trabalho foi sendo normalizado por cada sociedade, segundo o modo de produção adotado. Assim, via costumes foi sendo esculpido o Direito do Trabalho e o direito ao trabalho. Entretanto, no capitalismo o trabalho vem sendo identificado nos dois últimos séculos como modelador do caráter e forma honesta de garantir a existência. Enquanto isso, os trabalhadores foram sofrendo, mesmo que inconscientemente, com o empobrecimento das atividades realizadas por esses no seu tempo livre – assim o acesso à alta cultura (via acesso à filatelia, arte, poesia etc.) vem sendo substituída pelo consumo da cultura de massa, cada vez mais pasteurizada.

Numa sociedade altamente tecnológica, que se alimenta da desnecessidade de exércitos de reserva, trabalhar é mais do que regra de garantia da existência é meio de reconhecimento social e expurgo da possibilidade de sanção (moral e/ou legal) pelo não-trabalho.

Desse modo, o trabalho que deveria ser meio de hominização transforma-se, no dizer de Antunes em estranhamento, que em lugar de faze-lo homem simplesmente fortalece o modo infraestrutural de existir legalmente, por mais que importe em alienação e empobrecimento intelectual. Assim, o trabalho se faz acrítico e descolado da formatação de cidadãos íntegros (que participam da vida e a discutem, não apenas a reproduzindo).

Considero que a hominização pelo trabalho somente é possível em uma sociedade que estimule a criatividade e a criticidade como meios de exercício da cidadania, inventando permanentemente o homem e traduzindo qualidade de vida como sentido para a vida.

Assim sendo, responda: o homem inventa o trabalho ou é inventado por ele?


Referências

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ENGELG, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 2a ed. São Paulo : Global, 1984.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1988.

HOLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque: letra e música. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

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SANTOS, Abdias José dos, CHAVES, Ercy Roha. Consci6encia operária e luta sindical: metalúrgicos de Niteróiu no movimento sindical. Petrópolis : Vozes, 1980.
[1] Quando uma família contrata um jardineiro ou bombeiro hidráulico quer resolver uma demanda localizada e não gerar excedente apropriável economicamente.
[2] Ação de quem se locupleta do esforço alheio mediante logro.
[3] Eis/
O malandro na praça outra vez/
Caminhando na ponta dos pés/
como quem pisa nos corações/
que rolam nos cabarés./
Entre deusas e bofetões/
entre dados e coronéis/
entre parangolés e patrões/
o malandro anda assim de viés./
Deixa balançar a maré/
e a poeira assentar no chão/
deixa a praça virar um salão/
que o malandro é o barão da ralé.
[4] Personagem do livro Dona Flor e seus dois maridos do romancista baiano Jorge Amado.
[5] Nome de uma entidade da Umbanda da linha de Exu.
[6] Eu fui fazer um samba em homenagem/
à nata da malandragem/
que conheço de outros carnavais.
Eu fui a Lapa e perdi a viagem/
que essa tal malandragem/
não existe mais./
Agora já não é normal/
o que da de malandro regular/
profissional/
malandro com aparato de malandro oficial/
malandro candidato a malandro federal/
malandro com retrato na coluna social
malandro com contrato, com gravata e capital/
que nunca se dá mal./
Mas o malandro pra valer/
– não espalha/
Aposentou a navalha/
tem mulher e filho e tralha e tal/
Dizem as más línguas que ele até/
trabalha/
mora lá longe/
e chacoalha/
num trem da Central.
[7] Expressão que identificava um grupo de parlamentares que nos anos 1990 negociavam emendas no orçamento da União em troca de propinas.
[8] Personagem da tradição oral luso-brasileira que encarnava o herói sem caráter, bastante conhecido até meados do segundo quartel do século XX.
[9] Sanção punitiva.
[10] Sofrimento.
[11] Art. 5o, inc. XIII.
[12] Ibidem. Art. 7o, inc. XXX.
[13] Quer no sentido fabril (de fazer), quer no sentido esotérico (sob o aspecto mítico; de “virar”, transformar-se em, ou ascender a)